Reflexão sobre o Regime Jurídico do Maior Acompanhado

Elder Law

Artigo 07/08/2020

Reflexão sobre o Regime Jurídico do Maior Acompanhado

Escrito por Adriana João Lomba

Tempos idos são aqueles em que os idosos eram vistos como fonte de sabedoria, em que todos bebíamos das suas palavras e olhávamos para os mais velhos como um exemplo de vida, para a idade avançada como um privilégio que nem todos têm.

 

Tive oportunidade de participar num Grupo de Discussão organizado pela Dra. Laís Duarte de Moraes, em colaboração com a Comissão de Proteção ao Idoso (CPI), no passado mês de junho, no qual pude perceber a opinião dos mais diversos profissionais sobre todas as temáticas relacionadas com os mais velhos, nomeadamente na área da saúde. Concluímos que ambas as áreas têm, ainda, muito que evoluir para que possam adaptar-se aos idosos e não o contrário.

 

Envelhecer é um privilégio que nem todos têm e temos, todos, que perspetivar a velhice de outra forma, mais humana, mais justa.

No que ao Direito concerne, é de referir a Lei n.º 49/2018,de 14 de agosto a qual criou o Regime Jurídico do Maior Acompanhado. Se é certo que esta lei veio acrescentar alguma coisa ao nosso sistema judicial e garantir uma maior proteção aos idosos que dela careçam, certo é, também, que não acrescentou o suficiente.


A idade não é uma doença, da mesma forma que nem todas as doenças são lineares e se podem definir como estáveis. Nem todos os idosos carecem de acompanhamento, nem os que carecem necessitam do acompanhamento em termos idênticos.


Imaginemos, por exemplo, um idoso com uma doença de foro neurológico/demencial e/ou cognitivo, como Alzheimer, que se manifesta através da deterioração da função cognitiva e que, como resultado frequente, proporciona episódios de confusão, esquecimento, alternados por outros de lucidez.


Como podemos, enquanto comunidade assente num Estado de Direito, fazer o que está ao alcance num determinado momento histórico de modo a garantir (dentro do que é tecnicamente possível) que aquele cidadão mantem a capacidade de gerir a sua vida quotidiana, os seus bens, se, mesmo nos momentos de lucidez, lhe foi nomeado um acompanhante que gere toda a sua vida e do qual não necessita para tomar decisões informadas e autónomas?


Ora, não é possível definir judicialmente quais são os momentos em que o cidadão acompanhado se encontra na plenitude das suas capacidades ou sujeito a episódios que o afetam em virtude da deterioração das funções cognitivas. Não seria, por ventura, de se partir pela demanda de uma solução que agregue saberes multidisciplinares aos saberes do Direito – juntamente com médicos, psicólogos, entre outros – no sentido de proporcionar a um tribunal uma melhor percepção da realidade dos cidadãos que padecem deste tipo de patologia?
A não obrigatoriedade da perícia médica nestas temáticas veio introduzir alguma discricionariedade nas decisões dos tribunais. Se, por um lado, a magistratura judicial tem que produzir decisões judiciais tendo em conta todas as vicissitudes de natureza adjectiva e formal, por outro lado, em muitos casos, essas decisões de boa qualidade técnico-jurídica podem traduzir-se em veredictos não tão interessantes do ponto de vista clínico.

É, pois, cada vez mais indispensável a presença de um profissional clínico (médico, psicólogo ou outro) devidamente reconhecido neste tipo de processos, não bastando um simples relatório do médico de família a atestar uma qualquer incapacidade e desprovida de qualquer enquadramento específico adicional, tantas vezes necessário, nem sempre proporcionado e não raras as vezes de pendor generalista e meramente procedimental. Várias poderiam ser as soluções a aventar, mas qualquer solução deveria ser enumerada e concluída após discussão entre os profissionais do foro judicial e clínico, sem empurrar para os processos judiciais soluções clínicas desenquadradas da realidade, sem empurrar para a comunidade clínica soluções judiciais desenquadradas da realidade do paciente.


Como podemos garantir que um idoso, só, sem familiares ou pessoas de sua confiança na sua vida quotidiana (e tantos pelo país fora se encontram nestas circunstâncias), pode ser devidamente acompanhado?


Em última instância, prevê aquela lei que até o mandatário a quem o acompanhado tenha conferido poderes de representação (art. 143.º da referida lei) poderá ser nomeado acompanhante, na falta de escolha e se tal se afigurar necessário. Ora, o exercício do mandato judicial não obriga a que entre mandatário e constituinte tenha que proporcionar um contacto presencial, frequente, nem tampouco o mandato judicial proporcionar ao constituinte a satisfação de um interesse pessoal e não profissional por parte do seu mandatário. Claro que a relação de confiança existe, tem que existir, mas pode não levar à satisfação da mais basilar necessidade de um cliente no que toca às suas necessidades pessoais.


Por outro lado, como poderá o advogado assegurar que os direitos do seu constituinte nestas circunstâncias clínicas de intermitência da função mental são respeitados?

Usual nos meios mais pequenos é, também, a nomeação do presidente da junta de freguesia ou um funcionário desse órgão público. E permitam a questão: isto faz algum sentido? Qual a especial relação de confiança alguém pode desenvolver por ser acompanhado pelo Presidente da Junta? Será que essa qualidade garante a alguém um acompanhamento técnico adequado, desinteressado? Quantos cidadãos nesta circunstância um Presidente de Junta tem a seu cargo? E, já agora, faz parte do conteúdo funcional e dos poderes que lhe estão atribuídos o acompanhamento de cidadãos a quem tenha que ser declarada alguma incapacidade?

Urge acautelar e prevenir o abandono dos maiores acompanhados e facilitando a interação entre estes e os acompanhantes que não sejam seus familiares ou com os quais não tenham ligação de proximidade.

Além disso, ser acompanhante não pode apenas significar gerir os seus bens e tomar decisões de maior (ou menor) – deverá passar por acompanhar os idosos no verdadeiro sentido da palavra, em tudo quanto seja necessário, disponibilizando os recursos, a atenção, afeto, para que este não sinta o peso do abandono. Esta é, também, a função do Estado de Direito: garantir a dignidade na velhice.

Seria alcançável uma solução fomentar a constituição de um “banco de acompanhantes”, através do qual o Estado possa regular a sua atuação e fiscalização como forma de garantir que estes cumprem com os deveres que lhes foram designados pelo Tribunal, sem misturar a satisfação dos interesses do cidadão acompanhado com os seus?


Há todo um (longo) caminho a percorrer. Ainda que este regime tenha trazido largas melhorias relativamente aos anteriores regimes das interdições e inabilitações, a verdade estes parecem não chegar. São precisos passos maiores. A justiça tem que se aliar a outros saberes para que os cidadãos, designadamente os idosos ou outros que padeçam de patologias degenerativas ao nível cognitivo e que vejam colocada em causa a sua capacidade, vejam, um dia, os seus direitos devidamente contemplados e protegidos.

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